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sábado, 12 de março de 2016

AUDÁCIA DA PILOMBETA!

Dia de chuva parece que a gente nem consegue pensar direito, embaça a mente, sei lá. Hoje tive ideia de contestar algumas pessoas, mas a oportunidade já tinha passado, aquele negócio de depois você pensar: “Poxa eu poderia ter dito tal coisa”.
Estava almoçando no restaurante de Marcos Ortiz - quando ainda funcionava próximo à Gruta da Onça - e fui ao banheiro que havia ao lado da porta que dá acesso à cozinha. Antes mesmo de chegar perto uma moça de touquinha branca na cabeça me barrou dizendo que o bicho estava ocupado. Esperei e logo entendi a razão dela estar ali cercando a homarada...
De dentro do banheiro me sai uma moça bonita, alta, de cabelos encaracolados que, meio sem graça e divertida, falou.
- Você sabia que banheiro de homem é bem mais limpinho que de mulher? Pensei com meus botões: “Pode até ser mais limpinho, mas não é tão bem frequentado”.
Depois do almoço caminhei pelo centro da cidade de marquise em marquise, na verdade sem muito me importar em ficar encharcado, até chegar ao banco. Precisava sacar algum dinheiro e antes de voltar pra casa ainda tinha que achar um lugar pra comprar um novo estojo para minhas lentes de contato.
E a chuva não cedia.
Peguei a grana e saí tentando acessar o GPS mental na esperança de lembrar qual a ótica mais próxima de onde eu estava. O sinal estava fechado. Esquadrinhei o outro lado da rua e vi a antiga fachada para a qual eu nunca havia prestado atenção: Magazine e “Óticas” Primo. Não me recordo de já ter comprado alguma coisa naquele lugar, mas era o mais próximo, então dane-se o gambá!
Fui atendido por um rapaz que me vendeu o estojinho das lentes por cinco reais e escreveu o pedido num grande bloco de notas, daqueles de três vias. Eu ri da situação, enquanto o cara constrangido comentava que estava gastando mais papel do que o valor da minha compra.
- Mentalidade gerencial das antigas. - Comentei solidário e diplomático.
Depois de pagar, a moça do caixa devolveu minha minúscula compra numa sacola de plástico azul escuro, duzentas vezes maior do que o produto, ainda tinha dentro um daqueles calendários démodés. Preparei para reencarar a chuva com a sensação engraçada de ter passeado no túnel do tempo.
Na saída um senhorzinho de terno e gravata me jogou essa:
- Rapaz bonito não paga! - Me perguntei se ele realmente tinha dito aquilo pra mim. Estou pra te dizer que o cara me chamar de “rapaz” foi bem mais elogioso do que de “bonito”, afinal, tem velho bonito, enterro bonito, agora rapaz... Senti um bafo de juventude, era quase uma vítima de pedofilia.
Por outro lado, imagine só que situação constrangedora: um homem barbado e pançudo que nem eu, do alto de quatro décadas de roquenrous bem administrados, ser abordado por um biba geriátrica, duas da tarde, como se fosse algum fedelho cagão, filho de pai assustado!
Fui parar do outro lado da rua matutando uma resposta à altura, ainda que tardia. Escondido embaixo da marquise de madeira da obra de reforma do antigo Cinema Glória, pensei que poderia ter dito com ingenuidade e elegância:
Agora saquei porque é que chamam isso aqui de “O Magazine Alegre da Cidade”...

sábado, 5 de março de 2016

MARIA NILCE SUBSTANTIVO MULHER

Polêmica é um substantivo feminino, mas está longe de ser exclusividade do universo das mulheres como muitos marmanjos gostam de acreditar. A cidade de Vitória conheceu uma jornalista que viveu cercada de polêmicas, “barracos” que não eram a principal característica de seu trabalho, mas foram importantes porque fomentaram a lenda da mulher guerreira e geravam um interesse enorme por tudo que aquele furacão fazia na sociedade dos capixabas. Essa mulher se chamava Maria Nilce Magalhães e Maria Nilce era a minha mãe.

A maior parte das pessoas vive entediada e encalacrada, presas a empregos, casamentos e eterna insatisfação. Por isso precisam de tragédia como entretenimento, ficam muito excitadas ao saber que de repente alguém “deu a doida”, xingou o padre, largou o marido, roubou a empresa ou saltou da terceira ponte. A mente dessas pessoas é pequena, não porque querem, mas porque é assim que são. Apesar disso, ou por causa disso mesmo, uma parcela desse conjunto resolveu ser grande e outras, reconhecidas como “elite” ou “alta sociedade”, não viram com bons olhos a ascensão de nanicos, porque ser grande toma espaço e não se pode dividir o que é muito, pois sempre o consideram muito pouco.

No tempo de Maria Nilce (1941-1989) quando se apontava os “grandes” de Vitória estava se falando exclusivamente de homens, as mulheres eram educadas nas prendas do lar, preparadas para obedecer ao marido, cuidar da casa e dos filhos. Nos anos 1970 Maria Nilce foi uma daquelas que diversas vezes “deu a doida”, bateu de frente com um governador da ditadura e colocou no chinelo muitos “homens da imprensa”. Em dado momento atingiu o status de celebridade e como estas foi perseguida e difamada, mas devolvia os insultos e ridicularizava os desafetos em sua coluna. Sua presença incomodava, não é exagero afirmar que algo da polêmica que a cercava vinha do preconceito com sua condição de mulher.

A colunista do Jornal da Cidade pode não ter sido a primeira, nem a maior, mas de sua geração foi quem melhor conseguiu captar a imagem de “self made woman” e se transformou no símbolo da mulher capixaba bem sucedida. Além de colunista social de apelo junto ao público, era também uma empresária competitiva e inteligente, sabia vender e valorizar seu produto, uma de suas frases preferidas era: “quem trabalha não conhece fracasso”. Não foi à toa que escolheu o dia internacional da mulher para congregar as empresárias “da terra” em um evento que celebrava a independência de seu gênero.
 
A empresária do setor automotivo e cafeeiro Zuca Coser, falecida em 2009, com a colunista Maria Nilce 
No final da década de 1980, Maria Nilce consolidara posição no jornalismo e sua popularidade seguia em escala ascendente. Planejava construir uma sede moderna para o Jornal da Cidade, andava badalada na sociedade carioca, viajava pelo mundo e acirrava as críticas contra uma parcela perigosa da elite capixaba. O almoço que a jornalista promoveu em comemoração ao dia internacional da mulher no ano de sua morte reuniu quatrocentas mulheres, donas de grandes empresas, profissionais liberais e até representantes da política nacional como as deputadas federais Sandra Cavalcanti e Rita Camata.
 
Sandra Cavalcanti, deputada federal carioca discursa durante as comemorações do Dia Internacional da Mulher.
No dia 14 de março de 1989, Maria Nilce publicou em sua coluna um texto relatando o clima pesado que cercou o “Almoço da Mulher” naquele ano e classificou as ameaças de seus desafetos como “terrorismo”. Era um prenúncio do que aconteceria poucos meses depois: o assassinato covarde que pôs fim a uma disputa velada pelo direito de uma jornalista se expressar contra a necessidade de calar essa pessoa. Um crime de mando contra uma mulher indefesa, que posteriormente foi culpabilizada pela própria morte, na revista Manchete foi dito que ela “falava demais” e a mídia sempre a reduziu às tais “polêmicas”.
 
Almoço de Comemoração ao Dia Internacional da Mulher em 1989

No dia oito de março não é comum evocar a lembrança da jornalista Maria Nilce Magalhães e suas ações pioneiras em prol da valorização do empreendedorismo feminino capixaba. Deu trabalho calar a fera, mais trabalho ainda tem a elite para apagar sua presença da memória do povo. Mas, sabe minha mãe? Eu, que nunca me dirigi à senhora sua pessoa assim publicamente, estou ainda por aqui pra lembrar com saudade e com carinho da sua genialidade e de suas birutices – a Milla que virou gringa diz que você era gifted - e sei que tem um montão de gente bacana por aqui que se lembra de você assim também.

Quando comemoramos mais um Dia Internacional da Mulher, primeiro de tudo devemos orar, rezar ou meditar pela presença invisível ou mesmo a ausência de tantas e tantas mulheres impunemente espancadas, violentadas e assassinadas.  Em seguida peço ao menos um pouco de respeito à vida e à memória dessas vítimas, quase sempre perseguidas e difamadas, simplesmente por representarem a fragilidade nessa cadeia. E desejo que todas as mulheres tenham, sempre, o verdadeiro direito à liberdade de expressão e dignidade para viver e ser o que quiser e fazer de seu corpo e da sua história o que melhor lhe aprouver!

Segue o texto escrito por Maria Nilce:

No Dia Internacional da Mulher, quando esta cronista realizava um almoço para mais de quatrocentas mulheres, no salão do Alice Hotel, seu proprietário, Toninho Neffa, avisado anteriormente por telefonemas anônimos de que alguns gays iam até lá acabar com a festa, assustou-se com a presença de dois indivíduos estranhos que entraram no hotel sem camisa e pensando ser os travestis telefonou para a polícia e pediu reforço.

Soubemos depois que o autor dos telefonemas foi o comerciante Jadyr Primo, que também ensaiou a molecagem de mandar travestis para a porta do hotel para jogar pó de mico nas senhoras. Ali dentro do Alice estavam senhoras do maior respeito, todas dignas da maior admiração. Sobretudo, senhoras de idade como dona Josefina Hilal, como a mãe de Lourdinha Raizer, entre outras que não mereciam passar pelo susto que passaram.

Eu espero que as mulheres que estiveram naquele almoço não esqueçam do mal que ele me fez, pois desde as nove horas da manhã que este indivíduo passa trotes para minha casa, fazendo terrorismo e eu, apesar de saber de tudo, estive à frente do almoço, sorteando brindes, homenageando as aniversariantes, cuidando para que nada estragasse o brilho daquele dia que era só nosso e para que todas mulheres ali presentes não fossem perturbadas em nada. Se entrasse alguém para estragar a nossa festa, eu me jogaria na frente para defender as mulheres que ali estavam convidadas por mim.

Eu morreria por elas...
 
Último registro de Maria Nilce com seu filho Juca Magalhães:
foto de Heitor Bonino
Maria Nilce Magalhaes foi morta a tiros no dia cinco de julho de 1989, o julgamento de alguns dos envolvidos no assassinato levou quase vinte e cinco anos, as investigações não apontaram os principais mandantes do crime.
A investigação do crime contra Maria Nilce foi marcada por afirmações preconceituosas à mulher e propositadamente abagunçada, vide a manchete de A Gazeta


Início da desrespeitosa reportagem da Revista Manchete
Jornal do Brasil